segunda-feira, 9 de julho de 2012

Apontamentos Sobre um Passeio Pelas Margens do Rio Vizela


Num livro de que já falei neste blogue, Portugal – O Sabor da Terra, é a certa altura introduzida a distinção entre o tempo curto e o tempo longo. Esta divisão é interessante na medida em que nos permite entender o espaço e o tempo de uma forma mutuamente implicada. De facto, o tempo plasma-se no espaço, assim o criando na exata medida em que ele próprio é espacialmente representado.
O território português, na representação cultural que nos permite, enquanto povo, apropriá-lo, pode portanto ser pensado à luz desta forma dicotómica de representar o tempo. O tempo longo encontramo-lo assim, notavelmente, em Trás-os-Montes: na paisagem agreste, muitas vezes dura e amiúde desumanizada, nas pedras cifradas que, principalmente no distrito de Vila Real, compõem o espaço do olhar e dos passos humanos, ou (e referimo-nos aqui à compleição mais mimosa do distrito de Bragança) na imensidão inefável da paisagem, no largo e lento rendilhado dos campos que da elevada singeleza de um santuário roqueiro se lobriga. Nas diversas formas espaciais (espaço natural, espaço público, espaço social, etc.) que o tempo plasmou em Trás-os-Montes nota-se, portanto, uma cadência lenta, uma reverberação primordial de um tempo que não é simplesmente o tempo da existência humana historicamente narrável. Como na experiência da mamoa sobre aqual aqui escrevi anteriormente, há um tempo a-histórico em Trás-os-Montes que continuamente espreita no reverso do tempo empírico: um tempo mítico, se quisermos, um tempo do sonho, um illo tempore pagão, o que for.   
O Minho é o oposto de tudo isto: na textura do espaço vivido sente-se uma contínua efervescência temporal à medida que as realidades empíricas são vorazmente engolidas umas pelas outras. Nas representações culturais minhotas impera a imediatez sensível e uma certa provisoriedade: o minhoto vive para um quotidiano esfuziante e tem uma instintiva leveza alegre que se lhe plasma no discurso cantado e repioqueiro, um discurso dominado por códigos de uma masculinidade verbosa, vagamente bulhenta, mas sempre superficial e descomprometida. De facto, o espaço e o tempo minhotos dão-se mal com o silêncio, assim exigindo uma contínua verbalização ao mesmo tempo que resistem, pela surpreendente fluidez, a essa mesma cristalização representacional: diz-se e fala-se porque tem de se falar, mas já não é bem isso que se pretende dizer, se é que em algum momento houve uma verdadeira intencionalidade comunicativa. O vinho verde é, a esse respeito, o mais acabado símbolo do Minho: eternamente incompleto na sua borbulhante imaturidade, ruidoso ao cair no copo, vigoroso no pique mas leve no álcool, o vinho verde é bom porque admite francamente que nunca será o que ainda não é: um vinho mesmo. Ao invés, é um vinho leve e festivo que, como Torga diz a certa altura, “bebe-se e mija-se logo”. A vivência do tempo no Minho compreende, assim, tudo: passado, presente e futuro mesclam-se numa cadência imediata, curta e amiúde frenética, em que nada é para levar demasiado a sério, numa construção identitária cujo traço central é a fluidez.
Tudo isto surge a propósito de um passeio a pé ao longo de um curto trecho do rio Vizela. A impressão geral é a de uma paisagem híbrida, mas essa é uma caracterização que peca por defeito. Trata-se, de facto, de um hibridismo dinâmico em que os diversos elementos que a compõem se confundem num jogo caleidoscópico de identidades sempre parciais e nunca inteiramente assumidas. A única constante é mesmo a natureza profusa, verde de um viço urgente, que se insinua por todo o lado. O verde engole os passos dos passeantes a ponto de, por vezes, os envolver por inteiro, como quando se passa pela sombra convidativa de uma latada opulenta de parra. O milho cresce a um ritmo alucinante, com o vento ondulando-lhe ruidosamente as folhas, enquanto os renques de árvores marcam o rendilhado intrincado da propriedade. O rio tem algo de carnavalesco nas máscaras que continuamente troca: umas vezes apressa-se em rápidos que cantam em pequenos açudes, outras demora-se liricamente em frondosas ilhas de namorados; umas vezes deixa-se bordear de laboriosos campos agrícolas, outras torneia pesados e lúgubres edifícios industriais arruinados. Na voragem das suas mil e uma faces, o rio Vizela nunca se deixa captar por um rótulo representativo estável, porquanto cada uma das suas máscaras desmente as outras. Como se concilia o idílio lírico com a ruína industrial? E como explicar o vago tom avermelhado das águas face à ruína industrial? E o recorrente fulgor da biodiversidade do rio, como é que ele resiste à poluição? E a agricultura que convive com a indústria? E o lazer, e a vida noturna que complementam a alma termal da localidade? Que síntese é possível fazer de tudo isto quando todos estes elementos se reinventam continuamente, quando a única permanência na paisagem é o próprio fluir das águas? 

O mimo das hortas e os exíguos limites da propriedade.

Entre espinhos e flores: história de uma (des)industrialização.

A presença desordenada da indústria.

A fábrica e as flores: quem engole quem?
Crise e abandono.

Rio, ribeira ou plantas: o vigor quase excessivo da vegetação.

Cores bizarras num pequeno açude.

Entre vinhas e moinhos de água, uma velha aliança esquecida.

A imersão no verde.

Indiferente às descargas poluentes, uma cobra de água vai fazendo pela vida.

A precariedade dos percursos: o apelo de uma tasca reunindo os homens. 

Pesca: um homem exibe o seu troféu.

Idílio: a Ilha dos Amores, local de evasão erótica dos termalistas.

Murmúreos do Vizela: inspiraração para poetas, pintores e músicos.

Tarde de Domingo.
   


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